A cada manobra, um visual deslumbrante. A corrida de saveiros, realizada, ontem (4), entre as cidades de Salinas da Margarida e Maragogipe, abriu a cortina da Bahia para os velejadores franceses, que participaram da regataTransat 6.50.
Após velejar mais de 4 milhas náuticas e atravessar o Atlântico Sul a bordo dos pequenos e velozes Mini-Transat, os velejadores franceses decidiram enfrentar uma nova aventura.
Desta vez, dentro do rio Paraguaçu e embarcados em quatro saveiros baianos. Após quase quatro horas de regata, num dos pontos mais lindos da Baía de Todos os Santos, desembarcaram em Maragogipe com os olhos arregalados de quem havia passado por uma experiência inesquecível. “Este foi um dia fantástico. Velejar neste barco foi lindo, maravilhoso, mágico. Além disso, a paisagem do percurso é fantástica”, disse o skipper Denis Brica, 54 anos.
Acostumados a navegar pelo Oceano Atlântico e ver mil maravilhas do mundo náutico, não imaginavam encontrar na Barra do Paraguaçu, localidades tão pouco exploradas, mas de potencial turístico inegável. Foi como se nem acreditassem no que viam.
Para Dominique Barthel, é “diferente andar de saveiro”. Acostumado aos minis, como chamam os barcos de 6,5 metros da regata Transat, ele disse que gostaria de fazer tudo de novo, com mais tempo, para “algumas paradas estratégicas”.
Durante a travessia entre Salinas e Maragogipe, os saveiros passaram por um mini, da regata francesa, que estava ancorado próximo ao Forte Salamina. “É interessante como uma cena como esta nos leva a pensar na diversidade de culturas de europeus e baianos, a partir da interpretação dos costumes náuticos revelados pela diferença entre as embarcações”, diz Bartell.
A diferença de valores entre um barco mini da Transat e um belo saveiro surpreendeu Barthel. Enquanto um saveiro completo sai por 3 mil reais, em média, um Transat usado custa 20 mil euros ou cerca de 60 mil reais.

Belas paisagens

Marie Journel, extasiada, falou da “experiência única”, mostrando uma falsa impressão de cansaço, que na verdade, para ela, refletia a “felicidade de ter conhecido um local único no mundo”.
Ela ficou interessada em saber a origem dos saveiros, que serviam de barco de manutenção para levar peças de reposição para as caravelas, os barcos de oceano portugueses que chegaram ao Brasil nos anos 1500.
Embora sejam encontrados exemplares parecidos com os saveiros no Rio Tejo, em Portugal, as embarcações reinventadas pelos baianos têm suas características específicas, como a posição da buja, que é a vela menor, entre outros detalhes.
O mesmo sentimento de Matthiew Verne, velejador que destacou as reentrâncias e surpresas da rota, com os detalhes históricos do forte Salamina, que pontua o passado colonial da região colonizada pelos portugueses.
Os saveiros também tiveram importância decisiva na independência do Brasil, que foi consolidada pelos baianos em 2 de julho de 1823. Foi preciso utilizar a simplicidade e os ventos a favor para surpreender a poderosa frota portuguesa que sitiava Salvador.
A capital baiana estava cercada e, sem alimentos, poderia até se render, mas o almirante João das Botas teve a idéia de armar uma flotilha de saveiros com canhoneiras. O fator surpresa foi decisivo para pôr os portugueses para fugir em direção ao alto mar.
A libertação do porto de Salvador, por conta da ação estratégica da flotilha vinda da Ilha de Itaparica, reeditou a história bíblica de Davi e Golias, pois as pequenas embarcações conseguiram derrotar os poderosos lusitanos.
Os navegadores franceses saíram do Terminal Náutico da Bahia por volta das 9h de domingo (4) e tiveram oportunidade de elogiar também as belas paisagens do município histórico de Muritiba e outras localidades na rota terrestre rumo à largada em Salinas.

Corrida fortalece turismo
e cultura do recôncavo

Mais que a vitória do saveiro Ideal, comemorada até altas horas da madrugada de hoje (5) em Maragogipe, no Recôncavo baiano, a corrida dos barcos à vela tipicamente baianos revelou rotas para o turismo e fortaleceu a vocação náutica da região.
A avaliação do árbitro da regata, Davi Hermida, um dos entusiastas da recuperação dos saveiros do Recôncavo, é confirmada pelo sorriso estampado no rosto dos franceses da regata Transat 6,50 Charrente Maritime, que participaram da festa, no domingo (4).
Hermida citou o bom entrosamento entre franceses e baianos, como ponto alto da regata. “Não é todo dia que a gente junta navegadores acostumados com embarcações de alta tecnologia com os nossos mestres que sabem guiar os saveiros pelo Paraguaçu”, disse.
A frota franco-baiana levantou âncoras e abriu as velas por volta de 16 horas. De Salinas das Margaridas, partiu com destino a Maragogipe, em quatro barcos de tripulações mistas-Ideal, Sombra da Lua, Cruzeiro da Vitória e Novo Cruzeiro.
Como pinturas em movimento, faziam a coreografia no mar. Sombra da Lua abriu vantagem, seguido por Ideal, enquanto Novo Cruzeiro e Cruzeiro da Vitória “tomaram quebrança”, que é como se diz, no jargão saveirista, pegar o vento ao contrário.

Cambagem

Os dois barcos que ficaram para trás teriam de pegar barlavento para ganhar velocidade e não o sotavento que os levou para a contramão da corrida em direção à Barra do Paraguaçu, em 15 milhas náuticas, ou mais ou menos 30 quilômetros em linha reta.
A regata é uma disputa tática decidida pelo conhecimento que o mestre saveirista tem do mar e a capacidade de a equipe realizar as operações de mudança de perfil rápido da embarcação, chamada de “cambagem”.
Quando o vento muda, é preciso “cambar”, ou seja, virar o lado da vela para que ela aproveite ao máximo a corrente de ar, que ontem estava, em média, por volta de 15 nós, na popa, ou seja, mais ou menos 27 quilômetros por hora.
Foi numa destas cambagens que o mestre João de Merico realizou a manobra que seria editada nos melhores momentos da regata. Ele conseguiu o vento certo na entrada do Paraguaçu e saiu da lanterna para a segunda posição que manteve até o final da regata.
Após a chegada, já no trapiche de Maragogipe, Merico também se gabou por passar bem rente à margem, no momento da ultrapassagem, pois evitou a correnteza que poderia atrasar o Novo Cruzeiro em relação aos adversários. “Tem que conhecer”, disse.
Mestre Neto, no entanto, é quem podia tirar mais onda em relação aos colegas, como convém a uma disputa de autênticos saveiristas. Como vencedor, manteve a dupla tradição de gozar os rivais e recolher o dinheirinho das apostas no cais de Maragogipe.
Campeão, teve direito a dar sua aulinha pública em noite de glória: “Tem que escolher certo a rota, entre pegar o canal do navio, que é maior, entrar pelo rio, se estiver vazante, ou aproveitar o reguinho por fora, que é por onde eu vim”.
Esta saída pelo “cantinho do rio”, mais perto da chegada, compensou o vento fraco, que retardou a chegada dos últimos barcos, no início da noite em Maragogipe, onde um jantar à base de carne-do-sol, prato típico da região, esperava os navegadores.
Exaustos, mas felizes com tanta beleza, os franceses preferiram deixar para um outro dia, pois também já haviam praticado o “turismo gastronômico” com uma mariscada em Salinas, antes da largada. Uma nova regata os espera para rever os amigos do saveiro.

Mestres lutam para
tentar manter a arte

A inusitada competição náutica serviu para chamar a atenção da comunidade para a necessidade de fortalecer a prática dos saveiros. Hoje, são apenas 18 grandes e seis pequenos em todo o recôncavo, segundo dados dos organizadores da prova.
Além das dificuldades geradas pelo desenvolvimento da economia, que exige barcos com maior capacidade, os saveiristas reclamam das exigências dos órgãos de meio ambiente, pois não podem mais utilizar a madeira-de-lei necessária na construção. “Cada madeira serve para um pedaço do barco. É oiti, itaipeba, piqui, o mastro, por exemplo, tem de ser de sucupira, senão quebra. A gente não pode construir barco com jaqueira, né não?”, reclama o mestre conhecido por Xaxák, do Cruzeiro da Vitória.
Outra barra mais pesada que qualquer tormenta é o controle por parte dos estivadores na operação de desembarque de mercadorias. Os mestres saveiristas reclamam que eles “ganham no mole”, e os trabalhadores do mar têm de reduzir a remuneração.
Um mestre saveirista, que não quis se identificar, temendo represálias, “pois o pessoal da estiva é valente”, lamenta ter de perder dinheiro a cada viagem de transporte de mercadorias do recôncavo para o terminal de São Joaquim.

Decadência

Como exemplo, citou uma entrega recente de caxixis, como são conhecidas as peças de artesanato produzidas na cidade de Nazaré das Farinhas. “Eles podem cobrar até 4 reais por volume. Mas cobram 1 real pra não fazer nada, ficam é jogando dominó”, disse.
A redução do preço, que soa como uma “camaradagem”, não parece uma proposta leal, na avaliação do saveirista: “Quer dizer, a gente pega o peso que é dele, e ainda tem de pagar. É como se eles fossem donos. Isso prejudica porque desanima a gente”.
Mas nem tudo é queixa. Os transportadores de mercadorias do recôncavo conquistaram uma vitória ao desembarcar na rampa do Mercado Modelo, vizinho ao Terminal Náutico da Bahia, no bairro do Comércio.
Antes, ali também eles eram obrigados a deixar uma parte considerável do valor pago pelo cliente para os estivadores, que alegavam respaldo na legislação para exercer a cobrança, mas neste local, terminaram perdendo a queda-de-braço.
Naquele mesmo cenário, até cerca de 20 anos atrás, os saveiristas vinham abastecer Salvador com frutas, verduras e cereais produzidos no recôncavo, daí sua importância econômica que as rodovias foram minando aos poucos até a decadência.