Descendentes de escravos africanos, os moradores de antigos quilombos do Recôncavo estão perto de ver realizado o antigo sonho de ter acesso à água encanada. As comunidades da Bacia e Vale do Iguape, a 110 quilômetros de Salvador, que correspondem a um quarto da população de Cachoeira, não escondem a satisfação pelo início das obras.

O diagnóstico dos mananciais e a análise de como estruturar o sistema de abastecimento de água de forma integrada já foram feitos pelos técnicos da Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), empresa da Secretaria Estadual de Desenvolvimento e Integração Regional (Sedir), que passaram uma semana avaliando as possibilidades. Eles concluíram que a barragem da mata da empresa Opalma, se aumentada, pode abastecer cinco das 12 comunidades. As demais serão abastecidas por nascentes e poços próximos.

Outras equipes da CAR estão na região fazendo o levantamento topográfico na fase de conclusão do projeto executivo. O próximo passo será a contratação dos engenheiros e dos membros da comunidade que farão o assentamento e o trabalho de pedreiro. Para atender às 7.175 pessoas, o investimento será de R$ 1.484.202,68.

Além das comunidades quilombolas, outras três – Murutuba, Alecrim e Formiga – serão beneficiadas com a universalização da água. As obras serão feitas por meio da parceria da Sedir, Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur) e Secretaria de Promoção da Igualdade (Sepromi).

A mudança no sofrido cotidiano dessa gente é resultado da assinatura do governador Jaques Wagner, em 25 de junho, no município de Cachoeira, do termo de compromisso que garante a universalização da água para 12 comunidades remanescentes de quilombos da região, totalizando 511 famílias.

Caixas-d’água sem água

Dentre as adversidades enfrentadas pelos quilombolas, a mais urgente é a falta de água. “Já tivemos que roubar água. Temos muita necessidade dela aqui”, disse, emocionada, a líder espiritual Juvany Jovelino, do Caonge. “Cansei de chegar da maré, da roça, e ir pro Rio Pinto buscar água. Ia também para o Rio do Coqueiro pra poder lavar roupa e beber a fartar, mas o fazendeiro soltava os bois mais valentes e colocava no rio pra remexer a água, que ficava barrenta. Eu chorava e esperava a terra baixar pra enxaguar a roupa”, explicou.

Outras fontes de água em terras particulares foram alvo dos moradores vizinhos, mas as portas sempre se fechavam. A fiscalização passou a ser mais acirrada e aos poucos a possibilidade de obter água ficou ainda mais escassa.

A situação parecia resolvida, quando em 2000 o prefeito inaugurou um tanque de 20 mil litros. Mas, na mesma noite da inauguração, o tanque desabou por ter sido construído sem uma viga central de sustentação. Teve que ser reconstruído e, a partir daí, passou a atender às comunidades de Caonge, Calembá e Engenho da Ponte.

Uma decisão do gestor municipal, em 2005, abriu esse tanque para utilização de outras comunidades, o que passou a gerar conflitos e desvio do encanamento. “O problema voltou. A necessidade de um é de todos aqui”, declarou Juvany.
Indignada, Emília da Cruz Santos, afirmou: “Tem dia que a água que a gente pega é lama”. A moradora da comunidade do Calembá completou: “Nunca teve água aqui pra gente. O prefeito trouxe a água, mas quando perdeu o mandato acabou a água aqui”, contou, com tristeza, a dura realidade vivida no tempo do coronelismo.

Em algumas escolas municipais por onde a equipe do governo passou havia tanques de 10 mil litros, mas o que chamou atenção foi que, apesar de em cada um deles haver a frase “Água potável para o povo”, pintada na parede, inexplicavelmente, esses reservatórios nunca viram sequer uma gota d’água.

Enquanto isso, Ana Maria Leôncio, agricultora da comunidade do Engenho da Vitória, que possui uma nascente em suas terras, vai dividindo a água com quem precisa. “Se a gente tem, tem que dividir”. Ela explicou que tem gente que pega água no Rio Vagão, mas que não é limpa. E demonstra alto nível de compreensão: “Água, pra mim, é tudo. A gente leva um instantinho com sede e não agüenta. A fome a gente agüenta, mas a sede não. A gente sem água não é nada”.

Falta de água potável: reflexos na saúde

A falta de um serviço de água potável tem gerado muitas doenças. Níveo Borges da Silva, agente de saúde há nove anos, nascido no Iguape, revelou o ciclo da verminose que assola a população: “A pessoa toma o remédio hoje, amanhã bebe a água do rio e pega verme de novo. Nos exames que os médicos abrem não aparece um tipo só de verminose, mas quatro, cinco”.

Projetos de sustentabilidade não se desenvolvem sem água, segundo Ananias Nery, articulador de políticas públicas. “Sem saúde, você não trabalha; sem ler, sem escrever e sem possuir a capacidade de assimilar as informações, você não progride, e como podemos receber o turista sem água, sem higiene e sem comida?”, questionou.