“Só vai ao Bonfim quem tem um rosário de ouro, uma bolota assim, aí quem não tem balangandãs não vai ao Bonfim”. Se “O que é que a baiana tem”, música composta por Dorival Caymmi e gravada em 1936 por Carmen Miranda, diz que apenas uma minoria aristocrata participava dos festejos do Senhor do Bonfim, atualmente, a celebração é bem diferente. Com aproximadamente um milhão de participantes, é impossível não dizer que é uma festa religiosa, sim. Porém, democrática.
Há quase 260 anos, a Lavagem do Bonfim acontece sempre na primeira quinta-feira após o Dia de Reis (6 de janeiro) e é uma das maiores celebrações religiosas do país, que atrai milhares de pessoas, entre baianos e turistas do Brasil e do exterior. Gente de todas as raças, cores e credos participa da festa católica, e também uma reverência a Oxalá (Senhor do Bonfim, de acordo com o candomblé), uma reafirmação do sincretismo baiano.
Ao longo dos oito quilômetros percorridos pelo cortejo – da Igreja da Nossa Conceição da Praia até a Basílica do Senhor do Bonfim, na Colina Sagrada -, as manifestações culturais, religiosas e políticas se misturavam numa perfeita representação da paz entre os povos. A demonstração de fé por um mundo melhor e de respeito à diversidade, tão evidenciada durante a caminhada e lavagem do adro da igreja, não foi comprometida pelo tempo, que ora fazia sol, ora chovia.

Democracia e religiosidade 

Logo nas primeiras horas da manhã já era possível observar fiéis descendo as ladeiras próximas à Igreja da Conceição da Praia, no Comércio, e aos poucos ia se formando um grande aglomerado. A multidão não prejudicou a visão da secretária doméstica, Euclidalina da Cruz, 70 anos, que chegou cedo. “Vim cedo pra encontrar um lugar melhor e assistir o cortejo e à missa. Vim pedir saúde e paz, mas também agradecer as graças alcançadas. Precisamos pedir para acabar com a violência”.
Para dar ainda mais graça à festa, personagens conhecidos foram “ressuscitados”. Se pudesse resumir o cortejo em uma palavra, certamente, democracia e devoção estariam entre as primeiras da lista. Enquanto ‘Charles Chaplin’ reivindicava a presença do seu jegue, os cangaceiros não se preocuparam e colocaram os seus animais (de pano) para dançar. O boi também foi muito lembrado por várias pessoas, pelo menos os chifres foram bem representados. Satisfeito com o desempenho do time do coração, o vigilante e tricolor baiano, Paulo Sérgio Lima Santos, cumpriu a promessa. “Quando o Bahia desceu para a segunda divisão me sentí traído. Pedí ao Senhor do Bonfim que subisse o Bahia. Agora eu vou passar esse chifre para outro time da segunda divisão”.
As pessoas não pouparam na criatividade das fantasias. Para aqueles que deixaram para a última hora, os inúmeros ambulantes comercializavam fitinhas, colares, bonés, chapéus, chaveiros e cerveja, afinal, a festa também é profana. Com um carrinho multicolorido, sonorizado e com uma variedade grande de produtos, Renato Carlos da Silva lembrou que a Lavagem abre a temporada de eventos de verão. “Tenho mais de três mil peças para deixar as pessoas mais bonitas e arrumadas. Agora é a festa do Bonfim, daqui a pouco tem carnaval e a gente ganha mais dinheiro ainda”, prevê. 
A interação entre pessoas comuns e artistas das filarmônicas, dos grupos folclóricos e percussivos chamava a atenção de quem preferiu assistir os festejos das sacadas e calçadas. No chão da avenida ou em camarotes improvisados, ninguém ficou parado quando grupos como as baianas e caretas de Maragogipe, o Cortejo Afro, as senhoras do Samba de Roda La Prata Gamboa-Vera Cruz e as bandas femininas de Mulherada e a Batalá passavam cheios de graça e animação.

Purificação do corpo 

Considerando a diversidade étnica brasileira, para saber se um turista é da terra tupiniquim ou veio de outro país, somente perguntando. No entanto, os banhos de cheiro para purificar o corpo e a alma eram oferecidos espontaneamente a homens e mulheres daqui ou da Ásia, África, Europa ou das Américas. Numa festa sincrética não poderia faltar os grupos de Afoxé – os ‘candomblés de rua’. Um dos mais famosos da Bahia, o Afoxé Filhos de Gandhy, deu seu recado e contagiou o público.
A professora universitária Vera Lúcia Guerra saiu do Mato Grosso do Sul especialmente para participar do evento. “É uma energia fantástica, especialmente pelos grupos tradicionais. O Gandhy é o grande. Viemos aqui para ver de perto a fé e a cultura desse povo”. Se a fé e a cultura enchem os olhos de quem vem à Bahia, boa parte dessa conquista se deve aos artistas de rua. Empurrando o Robojamba, um carro ecológico confeccionado quase 100% de latinhas de alumínio, o ator, cantor, escritor e compositor Jamaica da Paz quer levar positividade, arte e cultura para todos os cantos. “A ideia é que a nave decole do Elevador Lacerda e aterrisse em cima do Mercado Modelo e depois, vá levar a mensagem de paz a quem estiver precisando em todo o país”.
Faltando menos de um quilômetro para a chegada à Colina Sagrada, dezenas de idosos do Grupo Renascer, numa demonstração de garra e determinação, pareciam não estar nem um pouco cansados. Sem parar, dona Lígia Leite, 78 anos, era uma das mais entusiasmadas com o cortejo. “Participo todos os anos e vou até o final”, garante.
A educadora e coordenadora de projetos socioculturais, Nalu Miranda, é outra devota que fez o trajeto completo. Ela esteve durante todo o tempo acompanhada de membros da associação que coordena e disse que “fazer todo o percurso representa reflexão, entrega e a fé que temos no Senhor do Bonfim. Chego aqui com a esperança de que as coisas podem sempre ser transformadas”.
Os milhares de fiéis que conseguiram chegar ao alto da Colina Sagrada engrossaram o coro do hino ao Senhor do Bonfim. Sentir a água benta no rosto e nas mãos, pode até não rebater o calor, mas, para quem acredita, é uma forma de combater os maus fluidos e pedir proteção. “Todo ano faço esse sacrifício. Venho até aqui para pedir proteção, perdão pelos meus pecados e saúde para mim e para minha família. Isso aqui é a fé, segurança e confiança em Deus”, disse a dona de casa Consuelo Fonseca, após acender uma vela na lateral da igreja.
Milhares também eram as velas e fitinhas amarradas nas grades do centenário templo. Aos poucos a multidão foi se dispersando do adro da igreja rumo aos bares das ladeiras, que serviram de refúgio para quem já havia cumprido o compromisso com Oxalá. As fitinhas continuaram ali, juntas como a multidão no cortejo, mas dançando apenas ao ritmo do vento.